27 fevereiro 2009

Vê.

- [...] E alho?
- Alho? A não ser o cheiro um pouco irritante, nada muito extraordinário em dentes de alho.
- E os crucifixos?
- O que há de errado com Deus?!
- Eu só... achei que vocês tivessem algum tipo de aversão.
- Não, claro que não. É tão verdade quanto o mito de que não somos visíveis em espelhos. Puros boatos. Nós mesmos os inventamos para fugir da perseguição na era vitoriana. Se pensassem que não tínhamos reflexo, por exemplo, nos livrávamos da fogueira e da guilhotina. Muitos de nós são católicos, não tiveram escolha.
- Mas vocês bebem sangue, não é? Precisam de sangue...
- Sim, assim como vocês precisam de água. Não somos animais, como a maioria de vocês pensa. Quando preciso, tomamos em copos, mas quando não dá, então...
- ...Vocês caçam?
- Exato. Claro, não sou nenhum ninfomaníaco sangüíneo, não tenho sede constante e não caço qualquer um.
- E quais são suas vítimas, no geral?
- Criminosos, corruptos... Eles me cedem o sangue e eu livro a sociedade de maus elementos, unindo o útil ao agradável. Conveniente, não?
- Mas... esse pensamento é comum entre vocês?
- Não, nem todos pensam assim. Alguns preferem a emoção da caçada sem regras, não gostam de se submeter a uma “boa conduta”. Afinal, fisicamente, somos mais fortes, não é? Se quiséssemos fazer algo, nada nos impediria.
- O que te levou a pensar tão... diferente?
- Na verdade, não sou o que sou por opção. Dessa forma, apesar das centenas de anos em que já estou nessa condição, nunca me desapeguei da minha antiga vida. Perdi boa parte da minha sensibilidade, mas todas as minhas memórias continuam aqui. Não sinto mais calafrios, por exemplo, ao matar. Creio que são elas que ainda me mantém “controlado”.
- E quando não caça, como consegue sangue?
- Libert é quem me fornece de dentro do necrotério. Ele sempre tem um estoque de “O” negativo para mim, por um preço bem acessível.
- Aa, entendi. E vocês... dormem em caixões?
- Oh, sim! Os caixões da Romênia são bastante confortáveis. A madeira é da melhor qualidade e a parte interna é feita do veludo mais pomposo e cheiroso. Mas não dormimos sempre nos caixões, na verdade, qualquer lugar escuro serve. Nossa pele não tem a mesma sensibilidade de antes, então, não faz tanta diferença dormimos no caixão ou debaixo da terra. Aliás, a terra do cemitério é bem quente e fofa.
- É comum encontrá-los por aí? Digo, na rua, cargos diversos...
- Claro! Somos tão diferentes assim fisicamente? A maioria opta por cargos diplomáticos, uma vez que possuímos idade para ter mais conhecimento que você, sua mãe e sua avó juntas. Um outro grupo está presente nos vários ramos das artes, como pintura e filosofia. Outros, ainda, os mais ambiciosos, se dedicam à economia. Lembro-me perfeitamente de quando Joseph me disse que, no mundo de hoje, você tinha que ter, pelo menos, uma empresa e um prédio particular de quinze andares, hahaha.
- Nossa! Posso então estar conversando com um sem saber? Sempre pensei que vocês eram mais cautelosos.
- E somos! A maioria, pelo menos. Quando Luiz XVI gerou suas primeiras crianças...
- Espere! Luiz XVI era um de vocês? O da França? Não posso acreditar...
- Mas é verdade! Porque você acha que ele perdeu a cabeça? Por ser um mal governante é que não foi. Joseph me descreveu perfeitamente como era naquela época, as penas que eram aplicadas a quem era descoberto. Muitos de nós foram queimados, degolados e enforcados e, apesar de governar a França, Luiz não poderia fazer nada para nos proteger se todos os franceses soubessem a verdade. Foi quando os boatos começaram. Passamos a ser invisíveis em espelhos e fotografias, tementes a alho e crucifixos e incapazes de permanecermos controlados ao perceber o mínimo indício de sangue. Alguns foram descobertos, pegos desprevenidos, mas a maioria permaneceu intacta. Um dos fatos mais curiosos foi a descoberta de Luiz. Me parece que uma de suas irmãs e o flagrou “atacando” um dos criados durante a noite, e gritou tão alto que acordou todo o castelo. O caso foi abafado por conta dos problemas com os jacobinos e a corte aproveitou a situação para se livrar do infeliz, decapitando-o. O resto teve de mudar de país, dispersando-se pelo mundo.
- Isso é... inacreditável! Como conseguiram conter a repercussão disso? Afinal, Luiz XVI foi um marco importante da história...
- Aa, foi fácil! Digamos que sua irmã era bastante desastrada com lâminas. Mas deixe-me continuar. Quando Luiz XVI começou a formar a sua primeira geração, apesar de estarmos maravilhados, ele fora bastante cauteloso, pelo menos nos primeiros anos. Mas gerou uma certa desconfiança, claro, alguns rapazes de repente passarem a morar em aposentos do castelo. Luiz, em seu deleite pelo sexo masculino, não queria abrir mão das “fugas” de seu casamento, mas não queria ser descoberto, até porque isso não seria um ponto a favor no seu reinado. Dessa forma, comprou um generoso lote de terra no sul e construiu uma residência grande e imponente, com traços evidentemente nobres e o interior ainda mais luxuoso que a parte da frente. Os móveis eram importados dos melhores mercados e Luiz abusou ao ostentar a morada dos filhos com todos os requintes dos quais um ser poderia experimentar. Nada lhes faltou, e foi desse modo que se inseriram, pouco a pouco, no meio nobre de Luiz. Joseph era um deles. No princípio, tudo parecia caminhar bem, mas o nosso querido Luiz acabou tendo aquele pequeno deslize e quase comprometeu a existência de todos, que já havia crescido em número consideravelmente. Mas é aí que entra a cautela! Ele conseguiu isolar a casa, construída num local estratégico, do resto da França, mantendo-a em pleno segredo, além de ter escolhido um local bem estratégico para ela.
- E como ele conseguiu isso? Quer dizer, ele estava morto...
- Luiz era bastante organizado e precavido. Antes mesmo de ser descoberto, garantiu a segurança dos outros passando a casa para o nome de Joseph, o primogênito, e, acredito eu, lhe repassou informações secretas. Entretanto, essas teorias de minha cabeça não posso lhes revelar.
- Tudo bem, tudo bem. Mas diga-me: Se vocês não morrem, porque Luiz morreu?
- Onde você ouviu essa asneira?! É claro que nós morremos. Só não das formas convencionais e nem com a mesma facilidade, mas morremos sim. Há locais específicos e vitais, que não são os mesmos que os seus, claro, que, se atingidos, causam um grande estrago. E foram eles que fizeram Luiz padecer.
- E quais são eles?
- Ora, não subestime a minha inteligência! Não por mim, mas pela preservação dos outros, não estou autorizado a falar.
- Tudo bem, não irei insistir. Mas e Joseph? Você falou tanto dele, mas não me explicou quem ele é e que relação você tem com ele.
- Joseph é meu mestre. Apesar de, tecnicamente, ser meu “pai”, o tenho como um irmão. No começo, não nos dávamos muito bem. “Não são compatíveis”, era o que diziam. Joseph gostava de porcelana chinesa, restaurantes caros e apartamentos luxuosos. Há algum tempo, se visitasse seu apartamento a qualquer dia e hora, encontraria mulheres loiras, morenas e ruivas perambulando pela casa, semi nuas e suadas, guardando em suas bolsas surradas objetos valiosos presentes ali. Eu, na época, prezava a filosofia, a pintura, a arquitetura. Você deve estar se perguntando como fizemos para consertar a nossa relação...
- Eu estava prestes a perguntar!
- Pois estão. Na verdade, nada fizemos, o tempo se encarregou de dar lugar às coisas. Ambos mudamos. Joseph recebeu uma pitada minha e eu uma dele. Dessa forma, ao longo dos anos, nos acostumamos um com o outro. Joseph é o mais velho que conheço. Apesar de sua personalidade voltada para o mundano, me ensinou (ou me instigou a procurar)tudo o que sei. As deixe-me acrescentar algo... Aposto minha vida (ou a não-vida, no caso) que posso adivinhar a pergunta que quer me fazer desde o início desta sessão.
- Pergunta? Pois bem, qual seria ela?
- Você está se perguntando por qual motivo eu estou aqui, relatando a minha vida e revelando meus segredos para uma pessoa que conheço há apenas algumas horas.
- A, claro, vocês naturalmente lêem mentes também... Vamos lá, em que número estou pensando?
- Neste caso não foi preciso. Mas se quer realmente saber, não lemos mente. A diferença entre mim e você é que consigo perceber alguns detalhes que normalmente passam despercebidos. Isso se chama Baixa Inibição Latente, e não adivinhação. Mas voltando ao assunto, acertei a pergunta?
- Acertou. O que tem a dizer agora?
- Na verdade, o motivo pelo qual estou lhe contando tudo isso é porque me sentia sufocado. Há anos “vivo” desta maneira.
- Mas sou repórter, poderia facilmente ficar rica às custas de sua exposição, se quisesse.
- Não irá.
- Tem assim tanta certeza de tudo?

No dia seguinte, um corpo fora encontrado próximo à Augustin Street, no interior de uma velha parede de um beco. A polícia, ao ser informada do crime por um morador local, não soube explicar o ocorrido. Extremamente lesionado, o corpo foi analisado pelo necrotério de Londres, que atestou a causa da morte como incompatibilidade sanguínea. A estranha ausência de 80% do sangue da vítima também foi mencionada no relatório. O que mais intrigou as autoridades foi a possibilidade, seguindo a lógica, de que o assassino possa ter conhecimento do tipo sanguíneo do atual defunto, uma vez que o crime foi classificado como assassinato. O único indício encontrado no local fora um pedaço de papel fechado firmemente sob a mão da vítima, onde havia um enorme “V” escrito tortamente. “Provavelmente, estava tentando escrever o nome do assassino, mas foi interrompido”, alegou um dos presentes. As atrocidades cometidas ali ainda não são totalmente conhecidas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Fico Ótimo Mari *-*
o final ficou muito legal XD
Adorei ;*********
Essa ruivinha é uma ótima escritora =D